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Foto do escritorAlmanaque de Canela

Os costumes de uma época retratados na história de uma família do Caracol


Família de Abílio Brocker


Narrativa das irmãs Vera, Vanda e Elsa Brocker,

em entrevista para Liliana Reid.










O endereço de Roberto Albino Brocker era Bairro Caracol s/n, Canela, RS, mas as cartas que chegavam vinham endereçadas para o Seu Abílio. Não estava errado, não, era assim que ele foi chamado até o fim da vida. Mas ali, nas terras da Lageana e do Caracol, todo mundo ou era parente ou amigo de parente, e o seu Abílio era muito popular. Sua casa ficava no alto do morro, de onde se avistava tudo o que acontecia lá embaixo, além de ser um dos lugares históricos do Caracol, onde tudo começou.



A casa fora construída no início da década de 1920 pelo pai, Balduino Brocker, neto de imigrantes alemães chegados ao Brasil em 1862. Balduino trabalhava com pecuária e tinha um açougue. Casou-se com Maria Wasem, neta dos primeiros moradores do Caracol. Ela crescera por ali, vendo todos os que chegavam e, depois de casada, ficou conhecida como Maria Brocker.



Juntos, tiveram nada mais, nada menos, do que 12 filhos, quase todos criados naquela casa. O mais moço era Roberto Albino Brocker, o Abílio, que cuidou dos pais, ali, no mesmo lugar, até ficarem velhinhos. E, na mesma casa, Abílio ficou vivendo depois que casou com Ivone Carmen Nunes Brocker, sua prima em segundo grau, em 12 de julho de 1947. Ali, criaram suas três filhas: Vera, Vanda e Elsa.



E foram justamente elas que, numa tarde fria de final de inverno, se reuniram comigo em volta da generosa mesa de chá, na velha casa da família, para uma alegre conversa, lembrando as histórias da infância e adolescência que passaram no Caracol. Além delas, estava presente, também, Maria Elizabete Nunes, as quatro que, por serem primas, tinham mais um casal de avós em comum: Pedro da Silva Nunes, filho de Canuto da Silva Nunes e de Paulina Wasem, e a avó, Maria Irma Allebrand, filha de João Allebrand e de Fredolina Helena Kochenborger. Todos esses ancestrais continuam ali, respeitosamente retratados na parede da sala de entrada, como se estivessem dando as boas vindas aos visitantes dispostos a ouvir as suas histórias.



O lugar que, hoje, visto sob a luz de nossos modernos padrões, parece ser uma simples casa colonial, durante as narrativas, parecia ter se transformado em um rico palácio de felizes lembranças. Voltemos às décadas de 50 até meados de 70, quando as meninas viviam e conviviam felizes naquela casa, com um mundo cheio de aventuras para viver enquanto faziam os trabalhos domésticos. Pois quem disse que criança não podia trabalhar? Seu Abílio e Dona Ivone sabiam muito bem que o trabalho digno ajuda a moldar o caráter, e de mais a mais, naquela época, havia tudo por fazer, e a ajuda das meninas na casa era preciosa. Tinham que cortar pasto para o terneiro, tirar o mato de volta dos milhos, capinar os inços, tratar as vacas, cuidar as galinhas... E faziam isso todos os dias, sem reclamar. Ao contrário, tudo o que faziam virava brincadeira.





- A gente era criança e não tínhamos os brinquedos de hoje - contam as três entusiasmadas com as lembranças e falando quase ao mesmo tempo.


– Brincávamos de casinha com os pedacinhos

de madeira e os galhinhos de árvore....




– Se a gente achava uma tampinha, logo virava uma panelinha. E tinha as bonecas de pano que a vó Irma fazia para as netas. Quando a gente era criança, não tinha Q Suco e nem essas coisas de refrigerante. Os avós faziam um pouquinho de vinho com água e açúcar pra gente. Mas bom mesmo era o suco das azedinhas: colhiam as folhas azedinhas das florzinhas, esmagavam, botavam água e... nossa! Era um suco tão bom o das azedinhas!



– A gente nem tinha tanto tempo para brincar porque tínhamos as tarefas da casa. Vinha a época da fruta, por exemplo, e a gente tinha que fazer as geleias e as marmeladas, que ficavam estocadas para o ano todo. Aí tinha as verduras, precisávamos fazer picles, ferver os vidros e guardar. Não era como hoje que tem feira toda a semana. Éramos como formiga: na época do verão, se produzia e se armazenava para o inverno.



– Aqui na casa, fazíamos manteiga. A mãe tinha vaca de leite e desnatadeiras e batia a manteiga. Tirávamos também muita pena de ganso para fazer cobertas. No verão era uma trabalheira para tirar as penas. A gansa põe ovos uma vez por ano, no final de julho e agosto, e aí, quando os gansinhos estão maiores, em novembro, numa lua cheia sim e numa lua cheia não, a gente depenava. Tirava penas do pescoço, do peito e debaixo das asas. Minha mãe botava um avental no colo e enquanto uma das filhas segurava o ganso, ia puxando. E o bicho mordia, e segurar a cabeça era o pior trabalho.



As Proezas do Seu Abílio















Mas voltemos ao Seu Abílio, também conhecido como Pruca - como era o som do nome Brocker quando pronunciado em alemão. As filhas contaram que, por um bom tempo, o único meio de transporte regular que havia era o do leiteiro, que era o Seu Abílio.

Ele fazia a coleta lá na Ponta da Limeira e fazia todo o percurso. Era um carro de caixa aberta onde entrava o leite, o terneiro, as galinhas, os ovos, e... as pessoas.



– Quando meu pai começou a trabalhar de leiteiro - conta Elsa - tinha um jipe com um reboque atrás, ia todo mundo esmagadinho ali. Aí ele comprou o caminhãozinho que já era maiorzinho. Ele improvisava uns bancos e era o ônibus da época, o único transporte que vinha parando de casa em casa. Também era ele quem levava as pessoas pro médico. As pessoas vinham a cavalo chamar, e ele saía, que nem louco, não interessava a hora que fosse, ele ia ajudar as pessoas. Quando chovia, a estrada entre o Garfo e Bombacha e o Castelinho alagava, a água quase tapava toda a roda. Ele enrolava uma toalha no carburador pra não molhar e atravessava a estrada para salvar as pessoas.

– Ele tinha que fazer toda a volta: Banhado Grande, Limeira, Esteinho.... Pegava o leite de casa em casa,com os agricultores, e levava para a Deal, em Gramado, para pasteurizar e distribuir. Seu Abílio, por sua vez, carregava os tarros de leite e carregava também as pessoas do Caracol que precisavam ir ao médico, ao dentista, ou quem precisava comprar coisas... As pessoas, às vezes, davam a listinha pra ele e nem iam. Por duas vezes, aconteceu de ter que se virar como parteiro! Uma mulher grávida, prestes a ganhar nenê, acabou dando à luz no carro, no meio do caminho.

E ele tinha aprendido primeiros socorros no quartel, então ele sabia o que fazer e tinha tudo no carro, tinha tesoura, tinha álcool – que usava para desinfetar a prova do leite - e tinha até linha que havia comprado para outro cliente e usou para amarrar o umbigo da criança. Tirou a camisa e enrolou o nenê. Tinha coragem e não tinha outro jeito. Noutra ocasião, uma mulher muito pobrezinha, que achou que ainda não ia ganhar nenê e seu Abílio estava levando para o hospital. E quando chegou, logo aqui no Garfo e Bombacha, nasceu a criança! De novo a mesma coisa, e lá se vai mais uma camisa pra enrolar a criança. Ali no Caracol, não tinha outro jeito mesmo!

Seu Pruca trabalhava muito, mas também sabia muito bem comemorar a vida e reunir os amigos. Primeira Comunhão era uma festança! Mais uma vez é a boa memória de Elsa que lembra:

– Meu pai matou uma vaca, matou o Beco, que era uma ovelha que nasceu e eu carregava no colo! Eu nunca me esqueço! A Beth chorou quando mataram o Beco. Para a festa, vinha gente de tudo quanto é lado e traziam coisas de presente. Lembro do Beto Nickele, veranista de Porto Alegre, muito amigo do meu pai, com quem passava horas conversando sobre a lida com cavalos. Ele era da família dos Gurshing e gostava tanto do Caracol que comprou terras por aqui e vem sempre até hoje. Me traziam até litro de Vermute de presente de comunhão. A tia Irene Kolliver, irmã do meu pai, também vinha de Porto Alegre com toda a família e fazia muitos bolos, chegou a fazer 15 bolos num dia.



A Adolescência no Caracol


O quarto da casa era um só para as três virmãs, e no armário cada uma tinha sua gaveta. Ninguém brigava, sempre estava tudo bem. A mãe ensinava às meninas todas as prendas domésticas, bordado, corte e costura. As festas também eram todas ali pelo Caracol. Ir para o centro de Canela ou Gramado só se precisava comprar coisas.

– A gente ia ao Banhado Grande, na Limeira, na Furna, e as festas eram boas!

Tinham os bailes, e a moda era usar minissaias, mais curtas que as de hoje. E como ainda não existia o celular, o telefone era um só em cada casa. Para marcar os encontros, se escreviam cartas que eram mandadas pelo leiteiro. Mas Seu Abílio e Dona Ivone eram rigorosos, não permitiam que as garotas dançassem de rosto colado e nem podiam ficar de mãos dadas, senão, apanhavam. Divertidas, elas contam que a mãe dizia que, se por acaso, alguma transasse com alguém, não pisava mais em casa, não era mais filha, podia ir embora de casa!

Vanda conta mais uma de suas pequenas maldades:

– Uma vez a Vera estava dançando num baile, e eu contei pro meu pai que quando parou a dança, a Vera ficou de mão dada com seu par. Quando chegou em casa, o pai tirou a cinta e deu nela.



Os Namorados também faziam das suas!


Os namorados, para visitar as moças, vinham a cavalo ou de charrete.

– O Neni (Hermes Urbani) namorava a Vanda, e o Renato Boeira namorava a Vera. Até que o Neni, que era muito inventivo e tinha a experiência da oficina do pai, resolveu facilitar a vida. Como entendia de mecânica, pegou um carro no ferro velho e reformou todo. Mas não tinha faróis. E numa determinada vez, ficaram um pouco mais de tempo na casa das namoradas e escureceu.

Então o Renato ia com a mão pelo lado de fora segurando uma lanterna. Enquanto um dirigia, o outro iluminava. Até que um bicho se atravessou na estrada e Renato muito interessado o seguiu com a luz da lanterna para ver aonde ia, e o motorista conduziu o carro na direção para onde a luz apontava. Moral da história: os dois foram parar no barranco junto com o bicho, com carro e tudo!



Meninas bem criadas


Das palmadas e pequenos castigos recebidos não ficaram mágoas, ao contrário, foram lições que ensinaram obediência e respeito aos pais, e que mais tarde as irmãs também souberam transmitir a seus filhos. Sabiam que tudo que vinha dos pais era para o bem e não discutiam as ordens. Tanto que cresceram ouvindo o pai dizer:

– Minhas filhas não vão passar trabalho na roça que nem a gente. As três vão ser professoras. E assim foi!

Com apenas 16 anos, Vanda já ia a cavalo dar aula na Lageana para 1ª e 5ª séries, e lembra que com o primeiro salário como professora comprou sua própria máquina de costura. Já nos anos 70, quando Elsa lecionou lá, tinha 42 alunos, todos da região. Conta que, tinha que ir a cavalo, pois não tinha outro jeito de chegar, a escola tinha só uma sala e a própria professora era quem fazia tudo, limpar a escola, fazer a merenda e ensinar. A maioria dos alunos são amigos que ela encontra até hoje ali pelas redondezas do Caracol.






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