A trajetória de um abnegado visionário e humanista do início do século XX em terras da ex-Província de São Pedro do Rio Grande do Sul
Solicitado que fui pela minha afilhada e sobrinha Graziela Hoffmann, primogênita de meu irmão caçula Normélio, transcrevo aqui uma pequena narrativa da trajetória de um homem o qual muito admirei e compartilhei de significativos momentos, vovô Sylvio Hoffmann.
Nascido em 31 de julho de 1893 – ano da Revolução Federalista -, portanto passados 131 anos, na casa da fazenda do Capão Bonito, à época Capela de Bom Jesus, 3° Distrito de Vacaria, Rio Grande do Sul, sendo vacariano de nascimento “e de coração” como bem lembro sempre dizia com muito orgulho.
Seus pais, portanto meus bisavôs, eram Frederico Hoffmann e Balbina Hoffmann. Juntamente com o irmão Christiano Hoffmann, foram pioneiros da colonização de origem alemã nos Campos de Cima da Serra, Nordeste do Estado, na última década do século XIX.
Leonino de nascimento, logo demonstrou seu espírito curioso, irrequieto e desbravador que o levou a grandes peripécias ao longo dos seus 75 anos de existência. Desde pequeno gostava muito de estudar e ler. Exemplo disso é o fato de acompanhar seus dois irmãos mais velhos, Dorico e Lucio até uma escola de um velho professor de nome Sérgio, que funcionava no salão da antiga Casa Grande, na Capela de Bom Jesus.
A partir de 1902 e até 1908 estudou na Escola do professor Silvério de Oliveira Ramos onde completou o primário. Durante o período de férias de verão frequentava aulas do colégio particular do professor Carlos de Oliveira Machado.
Por volta de 1909, então 15 anos de idade, foi convocado a dedicar-se às lidas do campo, auxiliando o pai que era tropeiro, criador e agricultor, onde chegou a atuar até 1913. Mas seus pais logo perceberam que não era essa a vocação de meu avô, que continuava agarrado aos livros. Assim, no início do verão de 1911 foi lecionar na casa do irmão mais velho, na localidade de Fundo das Almas. Terminado o verão, voltou à casa paterna dando continuidade aos afazeres da fazenda – cuidar do gado, plantar milho, batata doce, abóbora, feijão e algumas hortaliças. À exceção das hortaliças, parte da produção era vendida nos povoados de Três Forquilhas, Torres e Taquara e, com o dinheiro arrecadado, eram comprados produtos como açúcar, sal, farinhas, café, etc. que não eram produzidos na fazenda.
Em outubro de 1913 foi lecionar na localidade de Governador - 2° Distrito do município de Bom Jesus, onde permaneceu até maio de 1915. Um ano antes, em 4 de maio de 1914 foi nomeado professor subvencionado pelo Estado. Uma vez por semana, lá se ia feliz da vida o professor Sylvio, a cavalo, percorrendo, em duas horas e pouco, os 24 quilômetros que separavam a casa de seus pais da escola.
Sempre buscando aprimorar seus conhecimentos, em 1915 ele foi até o povoado de Três Forquilhas onde sabia existir um professor chamado Justino Alberto Tietböhl, regente de uma escola pública, com quem fez cursos de português, matemática e música. Em dezembro do mesmo ano, acompanhou o professor Justino e seu irmão Alfredo, até Porto Alegre, ficando lá por três dias na casa do professor Leopoldo Tietböhl, tio de Justino. Como havia comprado uma máquina fotográfica, sempre que possível registrava suas andanças, documentando lugares, fatos e pessoas que encontrava. Retornando a Vacaria continuou estudando com o professor Eduardo Gans.
Com 25 anos de idade incompletos, dia 5 de janeiro de 1918, o primeiro sábado do mês, na fazenda do Capão Alto, residência de seu sogro, João Pedro Jacoby, Sylvio contrai matrimônio com Leonor Jacoby, bisneta do reverendo Carlos Leopoldo Voges, primeiro pastor protestante da colônia Três Forquilhas. Nove meses depois, em outubro, nasce seu primeiro filho, a quem foi dado o nome de Raul. Pouco antes, em setembro, foi nomeado Secretário-tesoureiro municipal da Vila de Bom Jesus.
Por aqueles tempos havia comentários do surgimento de uma colônia nova situada em Palmeira das Missões, ao norte do Estado, margeando o rio Uruguai, chamada de Fonte do Mel, em razão de suas águas termais ali encontradas. O assunto despertou o espírito aventureiro do meu avô Sylvio, que não resistiu em ir investigar. Assim, em dezembro de 1919, após licenciar-se do cargo de Secretário-tesoureiro municipal, e em companhia de do amigo Theodolino Martins de Souza, parte em expedição rumo a novos horizontes, jornada feita a cavalo e mulas de carga. 1919, mais de cem anos atrás, cruzam por Vacaria, Lagoa Vermelha, Passo Fundo, Carazinho até Palmeira das Missões. Foram longos seis dias, de sol a sol.
Era verão de um calor insuportável e de intermitentes chuvaradas, O revés da viagem foram os surpreendentes ataques de mosquitos borrachudos que encontraram na costa do rio Uruguai. Eram tantos, que todos ficaram muito mal, inchados das picadas. Alguns tinham seus pés tão inchados pelas picadas dos borrachudos que chegavam a estar desfigurados. Outros eram acometidos de febre violenta, que os fazia ficar dias e dias impossibilitados das lides do campo. Isso, conforme meu avô, fez com que desistissem da empreitada, decidindo voltar às terras de Vacaria.
Ao retornar, de passagem por Lagoa Vermelha, entrou em contato com dois pastores evangélicos luteranos, que o presentearam com literatura e algumas narrativas sobre a religião, dando início, como ele mesmo diz, à conversão. Batizado na Igreja Católica, não tinha qualquer conhecimento sobre religião, uma vez que, conforme ele mesmo dizia “além de as missas serem faladas em língua alemã”, que ele não compreendia, “ninguém se dava ao trabalho de explicar. Tudo era mundanismo, no mais estrito sentido da palavra, como ainda hoje em dia permanece”. Em 1920, nasce seu segundo filho e meu pai, Romeu Hoffmann, dia 18 de julho, mesma data de nascimento de minha avó, Leonor Jacoby Hoffmann. No ano seguinte, No Natal de 1922, juntamente com seus irmãos José e Lúcio, vovô Sylvio passa a ser luterano.
No início do ano de 1928 ouviu falar de uma pequena e promissora localidade chamada Canela, que recentemente havia sido ligada à capital do Estado pela rede da Viação Férrea. Em viagem investigativa, saiu de Bom Jesus a cavalo até Canela, onde encontrou vários conhecidos, entre eles o professor Eduardo Gans. Isso fez com que decidisse se mudar com a família para a nova comunidade, chegando em 4 de agosto de 1928.
Sem ter muita prática, mas com a percepção de que poderia ser um bom negócio, já que era inédito, logo deu andamento a construção de um prédio em frente à praça central, para instalar um cinema. Através de um concurso público, o nome escolhido foi Cine Ideal, inaugurado no dia 29 de dezembro de 1928. Mas apesar de boa frequência no verão, no inverno a casa ficava às traças... Chuva intermitente, frio e lamaçal, já que as ruas não eram calçadas, impediam a presença de público. Assim, com mais despesas que lucros, decidiu fechar o cinema no final do verão de 1930.
Em julho daquele ano, após consultar minha avó, dona Nenê, resolve ir com toda a família morar em Gramado para lecionar no Grupo Escolar de Gramado, nomeado que havia sido pelo governo do Estado. Em 1934, foi removido a seu pedido para a localidade de Mundo Novo, onde desempenhou, além do papel de professor, de diretor da referida escola. Em 1939, por questões de saúde de um dos filhos, novamente solicita remoção, desta feita para Canela, onde passa a lecionar no Grupo Escolar Eduardo Gans, situado junto à Fábrica de Celulose e Papel de Canela. Sendo um dos seus fundadores, ali permanece até sua aposentadoria, em 1955.
Além das atividades docentes, Sylvio Hoffmann teve participação ativa na vida da comunidade de Canela, tendo papel fundamental na fundação da Comunidade Evangélica Luterana Cristo Redentor, em junho de 1942, desempenhando ainda esforços para a construção da igreja, inaugurada em 5 de dezembro de 1948.
Anos seguintes acompanhou os trabalhos, na qualidade de secretário, para a fundação do Ginásio Bom Pastor, na localidade de Linha Brasil, cuja inauguração ocorreu em 6 de junho de 1953.
Sua participação também se faz presente nas atividades ligadas ao tradicionalismo, com várias atividades, dentre elas a diretoria da Associação Rural de Canela e integrante da comissão executiva da Primeira Exposição Agropecuária e Industrial de Canela, em dezembro de 1955. Antes disso, em 22 de julho de 1954, idealizou e ajudou a fundar o Centro de Tradições Gaúchas Querência, tendo atuado como secretário, tesoureiro e patrão (presidente).
Vovô Sylvio, sempre muito disposto e solícito, gostava de pitar um palheiro, cujo aroma exalado pela fumaça me deixava meio tonto. Mas isso era o de menos, o bom mesmo eram nossas saídas em tardes de sábados ensolarados para longos passeios com o objetivo de plantar hortênsias ao longo das estradas vicinais do município. Era assim, vovô Sylvio vinha com duas pequenas cestas de vime, com as mudas já prontas, cobertas com uma pequena toalha quadriculada nas cores vermelha e branca, onde se acomodava um delicioso sanduiche de pão caseiro, ora com mortadela e queijo, ora com chimia de goiabada, preparados pela vovó Nenê.
Por falar em vovó Nenê, lembro das tardes de domingo em que toda a família Hoffmann se reunia na casa do vovô Sylvio... todos os filhos e noras e netos. Os irmãos ficavam com os diálogos próprios de homens, sorvendo um mate amargo, enquanto que as mulheres ficavam com as conversas típicas das donas de casa da época. Isso nos anos 1950-60, época que lembro bem, pois vovó ficava ao redor de um fogão a lenha assando broas de polvilho na chapa para servir a todos que ali estavam.
Durante mais de duas décadas, vovô Sylvio presidiu eleições em diversas localidades do município, tendo participado de algumas dessas incursões com alguns primos que acompanhavam as viagens, de onde trazíamos laranjas, bergamotas, pães, queijos, vinhos e outros produtos coloniais que nos eram agraciados. Além disso, atuou como Juiz de Paz até 1966.
Sua participação ativa na vida política da cidade incluía a redação de discursos dos candidatos (era filiado ao PSD – Partido Social Democrático, do presidente Juscelino de Moura Kubitschek, Tancredo Neves e Brochado da Rocha). Também dava sugestões e secretariava reuniões de trabalho para prefeitos e vereadores. À época, juntamente com seu amigo, vereador Bertholdo Oppitz, após realizar um plebiscito obteve a agregação ao município de Canela de duas glebas de terra (cerca de 40 hectares) antes pertencentes ao município de Três Coroas.
Ao fazer uma viagem até Caxias do Sul, possivelmente para visitar sua irmã caçula, Maria Christina, sofreu um AVC e, após ser atendido, foi transferido para o Hospital de Canela. Ali permaneceu por alguns dias, até vir a falecer em 23 de junho de 1968, aos 75 anos de idade.
Observação: o texto acima tem como fonte de consulta um livreto, digitado em máquina de escrever, com 127 páginas, com o título de Uma Narrativa, onde constam as memórias de Sylvio Hoffmann até o ano de 1966.
Alguns apontamentos são de minha autoria, cujas lembranças foram aflorando à medida em que redigia a presente resenha.
Norberto Hoffmann
Junho, 27/2024
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