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Foto do escritorAlmanaque de Canela

ÁGUA MOLE, PEDRA DURA, por Eduardo Bueno

Atualizado: 4 de jul. de 2024



Nas profundezas da Lageana os minutos escorrem com lentidão. Ainda assim, a dança das cores é veloz como num filme acelerado, pois, enquanto uma das laterais do cânion rebrilha imersa na luz, a parede oposta vai mergulhando rapidamente nas sombras do entardecer. Em certos trechos, os paredões se apresentam desnudos: é rocha pura e nua, marcada apenas pelas cicatrizes do tempo, um tempo imemorial que não se conta em dias, mas em séculos. As ranhuras e reentrâncias das pedras parecem rasuras e borrões numa pintura antiga: são pardas ou acinzentadas, quase indistintas, como se o paredão fosse enganosamente liso. Noutros trechos, a muralha vertical se mostra vestida de matas e ali são elas que se precipitam para o fundo do vale, feito cachoeiras vegetais: as raízes e os galhos se agarrando às cavidades ou às saliências da parede caprichosamente irregular.


Um pássaro passa zunindo, uma borboleta esvoaça em câmera lenta; ambos seguem seu rumo, em direção e ritmo opostos, enquanto o arroio avança saltitante, esgueirando-se sinuoso e insinuante feito serpente aquática: ele tem destino certo, mesmo traçando um curso errático. Então, as corredeiras vão ficando mais fortes, a umidade mais densa, as árvores maiores, as sombras e os sons mais intensos. Parece que a própria natureza está a emitir os sinais que antecedem o início de um espetáculo, como o velho teatro no qual o tabuado range à medida em que os atores vão adentrando ao tablado.


E de fato não é menos que um espetáculo a cena que, num instante, se desvela aos olhos do caminhante, como se as cortinas tivessem sido abertas. Do alto do paredão de basalto, onde o vale termina, uma torrente d´água despenca com um rugido, com um fragor. São 130 metros de queda livre e ali está ela, em todo seu esplendor: é a cascata do Caracol, uma das paisagens mais conhecidas e reconhecíveis da Serra Gaúcha, do Rio Grande do Sul, do Brasil. A diferença é que, vista do seio do vale da Lageana, e não do topo, como uma multidão de turistas costuma contemplá-la, ela exibe uma magnificência, um ímpeto e um viés ainda mais surpreendentes.


Um véu de gotículas se espraia por todo o anfiteatro rochoso que, como um palco abobadado, abraça a queda d´água em semicírculo. A água se estatela nos vastos blocos de rocha que despencaram lá do topo há séculos, mas jazem espalhados em angulosa desordem como se tivessem caído ontem, com um estrondo, com um estrago. Tudo é limoso e escorregadio, tudo parece ao mesmo tempo em movimento e em suspense, tudo ecoa noutra dimensão: um tempo e um espaço imemoriais. E a cortina de neblina finge ser uma chuva que, em vez de cair do céu, se ergue do solo pois, é fruto dos estilhaços da água mole se chocando contra as pedras duras que ela mesmo fura.

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